publicado em 26 de abril de 2012 às 12:15
por Conceição Lemes
Em 18 de março, o taser, ou pistola de choque, matou o estudante brasileiro Roberto Laudisio Curti, 21 anos, em Sydney, na Austrália.
Não foi o primeiro. Segundo a própria polícia australiana, outros seis óbitos por taser já tinham sido registrados no país.
Nos EUA, segundo estudo da Anistia Internacional, de 2001 a agosto de 2008, 334 pessoas morreram após serem atingidas por taser.
“Embora seja considerada uma arma não letal, a pistola taser pode matar, sim”, advertiu em matéria publicada no Viomundo o clínico geral Arnaldo Lichtenstein, do Hospital das Clínicas de São Paulo, professor colaborador do Departamento de Clínica Médica da Faculdade de Medicina da USP. “Evidentemente uma pessoa com doença cardíaca atingida tem mais risco. Se usa marcapasso, o aparelho pode desregular. Porém, uma pessoa saudável, hígida, não está totalmente livre de risco.”
Carlos Alberto Lungarzo, membro da Anistia Internacional e professor titular aposentado da Unicamp,
reforçou: “O taser representa um grande perigo, pois a polícia ilude a população com o fato de que ele não é letal. Só que essa ideia embute falácias”.
O taser é uma pistola cujos “disparos” dão eletrochoque. O objetivo é paralisar possível infrator.
Atualmente existem 700 mil no mundo. No Brasil, chegam a 15 mil. Aqui, está em uso pelas polícias de vários municípios e estados, como Rio de Janeiro, Acre, Bahia e Rio Grande do Sul. Deverá ser utilizada pelas forças de segurança do Brasil durante a Copa do Mundo de 2014 e os Jogos Olímpicos de 2016. Tanto que governo federal, estados e cidades-sede já confirmaram que vão priorizar o uso desse tipo de armamento em instalações esportivas, estádios e seus arredores.
O taser é uma das chamadas armas não letais. Fazem parte delas também o bastão de choque, o gás lacrimogêno, as balas de borracha e o spray pimenta.
No Brasil, nunca se discutiu o uso dessas armas sob a ótica dos direitos humanos. Portanto, é oportuníssima a carta (está abaixo) enviada por Marcelo Zelic e Roberto Monte à ministra Maria do Rosário, da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República.
Em 2011, em audiência pública na Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa de São Paulo, a ministra Maria do Rosário se comprometeu com o seu presidente, o deputado Adriano Diogo (PT), e com Marcelo Zelic, vice-presidente do Grupo Tortura Nunca Mais-SP, a criar um grupo interministerial, incluindo ouvidores, para estudar o assunto. O grupo ainda não saiu do papel.
À Ministra Maria do Rosário,
É uma vergonha o descaso do estado brasileiro com a situação da falta de regulamentação do emprego de armas menos-letais em nosso país. É sim, um grande nicho de mercado que se desenvolve, sem planejamento, sem educação para o uso consequente e balisado em praticas democráticas e de direitos humanos, sem estudo sério e independente sobre o impacto à saúde dos cidadãos, bem ao gosto da cultura de capitão do mato. O consequente emprego em TORTURA destes armamentos é hoje, apesar das poucas denúncias que vêm à tona, uma realidade que foge ao controle do estado, situação esta criada pelo proprio governo que liberou o emprego massivo destes armamentos de forma irresponsável e criminosa. Somado à impunidade dos torturadores de ontem e de hoje e o corporativismo das forças de segurança, das corregedorias e da propria justiça, o cidadão se vê à merce da arbitrariedade, do preconceito e de práticas de terrorismo de estado, que perduram em nossas instituições.
Há mais de ano que estamos denunciando esta situação, inclusive em audiência pública na Assembléia Legislativa do Estado de São Paulo em que a Ministra esteve presente e de público garantiu que iria se empenhar em resolver esta situação, criando um grupo de trabalho interministerial para regulamentarmos o emprego e uso destes armamentos. Nada foi feito e neste meio tempo várias pessoas ficaram cegas de um olho atingidas por balas de borracha, sofreram sequelas e casos de morte também já ocorreram. Tantas outras têm sido torturadas como o caso de André de Jesus Gomes da Silva, ver abaixo, que traz agora em seu corpo a marca dos choques sofridos com o emprego criminoso da pistola taser e teve coragem de trazer o assunto a público.
É curioso ver que em 1969, outro Gomes da Silva morria sob tortura. Virgílio, o comandante Jonas da ALN, inaugurou a pratica de desaparecimento forçado de opositores no DOI-CODI de São Paulo e apesar da Corte Interamericana de Direitos Humanos condenar o estado brasileiro a punir seus algozes, o Brasil em sua resposta à esta corte, escolheu se esconder e falsear o que efetivamente não tem feito para punir torturadores, como Brilhante Ustra e Dirceu Gravina, ou Sebastião Curió, recentemente processados pelo MPF, que vem sofrendo toda sorte de resistência para fazer lograr suas iniciativas. A mesma omissão vemos hoje por parte do estado brasileiro ao não enfrentar o lobby da bala e da industria de segurança pública em não desenvolver mecanismos que proporcionem uma adequação das forças de segurança pública e privada à vida democrática e o respeito aos cidadãos.
A autorização para que os estados da federação passem a usar estes armamentos se deu no último dia do governo Lula, abrindo o campo da segurança pública às empresas que produzem tais armamentos e ditam o como usar e falseam os perigos e riscos à saúde dos cidadãos. Necessitamos enfrentar essa questão. Como é possível um corpo policial treinado para a letalidade, usar de uma hora para outra, equipamentos menos-letais de outro modo? Cursos de habilitação com poucas horas, cujo foco é o manuseio são capazes de mudar uma mentalidade anti-democrática e repressora que perdura nas polícias país afora? Daí as fotos de pessoas com tiro de bala de borracha no rosto, na nuca, no peito, bombas de efeito moral destroçando pernas, dedos e tantas outras absurdas como as que vimos recentemente em Pinheirinho em São José dos Campos no Estado de São Paulo, onde estes armamentos foram usados de forma abusiva e absurda contra a população.
Não devemos fechar os olhos a esta situação Ministra. Não podemos pelo presente e futuro de nosso país e nossas instituições. O volume de armamentos em utilização amplia a cada mês, mais e mais unidades de polícia passam a utilizá-los, bem como o setor privado e não existe nehuma regulamentação que discipline seu emprego e seja paramêtro e mecanismo de defesa de nós brasileiros e brasileiras.
Entendemos ser fundamental a criação imediata do Grupo de Trabalho Interministerial para regulamentar o emprego e uso destes armamentos, a sua proibição em manifestações políticas, sociais e culturais, bem como a suspensão de uso até termos definido os estudos de impacto sobre a saúde do cidadão e a correta forma de uso e emprego.
Solicitamos uma rigorosa apuração e punição da tortura sofrida pelo mecânico ANDRÉ DE JESUS GOMES DA SILVA e o cumprimento integral da sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos com enfase na desobstrução da justiça para que os processos contra os torturadores da ditadura militar prosperem até uma sentença que contribua para quebrarmos o ciclo de impunidade em nosso país e no desenvolvimento de mecanismos de educação para a democracia e direitos humanos nas várias instâncias de nossa segurança pública.
Ministra, o crime de tortura deve efetivamente ser hediondo, inafiançável, imprescritível e sem direito a benefícios de diminuição de pena. Salientamos a necessidade de tornar os crimes de tortura apurados em ambito federal e uma completa reformulação das corregedorias de polícia, tornando-as independentes e sem a presença de membros das forças de segurança, bem como acabarmos com a justiça militar, tornando todos iguais perante a lei. Só construiremos mecanismos de não repetição conforma aponta a sentença da Corte IDH com medidas concretas que mudem o comportamento e a cultura dos agentes que promovem as violências que nos atingem hoje. A regulamentação das armas menos-letais é uma medida prática que estimulará o Nunca Mais em nosso país.
No aguardo de encaminhamentos que possibilitem um combate efetivo a esta bárbarie.
Atenciosamente,
Marcelo Zelic
Vice-presidente do Grupo Tortura Nunca Mais-SP e membro da Comissão Justiça e Paz da Arquidiocese de São Paulo. Coordenador do Projeto Armazém Memória
Roberto Monte
Coordenador do Centro de Direitos Humanos e Memória Popular-RN e DHnet